
RINDO DO ABSURDO: A ERA DO HUMOR NIILISTA
Depois de muita embromação, finalmente, resolvi assistir “Rick and Morty”. Criada por Justin Roiland e Dan Harmon, a série segue a vida de Rick, um cientista alcoólatra, e seu neto, Morty, que, juntos, aprontam mil confusões em rolês no tempo-espaço.
Alguns pensamentos me atravessaram enquanto assistia os episódios, porém, de início, o que acho curioso — e até engraçado, diria — é notar o sucesso de uma produção que flerta descaradamente com o pensamento niilista. Isso diz muito à respeito da época em que vivemos e me fez pensar o porquê do interesse das pessoas em comédias como essa.
A internet talvez seja a primeira pista. No centro dessa cultura, encontramos nada além de piadas. A internet é um local onde tudo pode, em certa medida, ser engraçado. Os exemplos são muitos. Basta um simples passeio na timeline para esbarrar em memes, espaços inteiros dedicados a produzir conteúdos humorísticos e muitas — digo, muitas — meta-piadas, que exigem um amplo conhecimento desse mundo particular. Online nos deparamos com uma realidade onírica na qual idéias se distorcem e desaparecem repentinamente; onde piadas autorreferenciais (memes) modificam-se a cada iteração, sendo alteradas por outro usuário que, por acaso, esbarrou na piada de outra pessoa, em um loop infinito, até que tudo perca a coerência. Nesse mundo extraordinariamente surreal e bizarro, o horror mistura-se com o humor, e as pessoas — em especial os jovens — sentem-se à vontade para brincar com um sentimento que parece cada vez mais advir da vida cotidiana: a crescente suspeita de que, talvez, o mundo simplesmente não faça sentido. Assim, o niilismo se torna, hoje, uma síndrome filosófica urgente.
Online, nada importa, nada faz sentido, nada é real e, claro, nada é sagrado. Características estas que são também a base para os lamentos associados ao niilismo, um olhar no qual o mundo é imperfeito e defeituoso. Para o niilista, o mundo real não é como deveria ser. Espera-se beleza, mas encontra-se apenas podridão. Espera-se valor, mas não existe importância. Espera-se perfeição, mas há somente decepção. Para o niilista, a realidade e os desejos estão em conflito eterno um com o outro, e seria essa uma condição em que estamos todos condenados.
Em seu livro Por uma moral da ambiguidade, Simone de Beauvoir diz que os niilistas são “idealistas frustrados”. Em outras palavras, os niilistas se resignam a um tipo de fatalismo, uma espécie de impotência existencial, na qual tudo está fadado ao fracasso, pois devem inevitavelmente ficar aquém da perfeição. Se a perfeição é o objetivo, nada realizado no mundo real poderia suprir essa necessidade. Mesmo as maiores realizações humanas ainda são decepções e toda atividade mundana equivale a uma luta vã em busca do impossível.
Portanto, não é de se estranhar a aproximação dessa geração com o niilismo.
Pense bem: em se tratando de duvidar da importância essencial do mundo, hoje, as pessoas têm suas razões. A política caracterizada pelas crises, as interações afetivas — dominadas pelas redes sociais — e até fontes tradicionais de significado, como religião, perderam toda e qualquer relevância. O clima atual é um terreno fértil para a frustração e raiva em relação aos ideais que nós — culturalmente — costumávamos manter. A estrutura moral produzida por esses pilares foi substituída pela indiferença. Não quero com isto dizer que todos são essencialmente pessimistas, mas sim que o tropeço em sentimentos de vazio e desespero tornou-se algo rotineiro. Nada mais importa.
Nesse cenário, ao invés de tentar alinhar ou restaurar um sentido, a lei é reagir, com bom humor, às emoções de um mundo irreconhecível.
"Rick and Morty" é um programa que segue essa tendência. Há outros. Tim & Eric, por exemplo. A dupla — também do canal Adult Swin — transita entre o estranho e o grotesco, descontroladamente entre o horror e o humor. Há uma sensação de pavor, mas também há alívio. Um chamado para rir do estranho e do absurdo.
O material dos humoristas — como nesse trecho — é composto em sua maioria por bits surreais, com temática retrô, lo-fi e edição propositalmente “horrível”, criando assim uma sensação constante de estranheza. “Acho interessante viver entre o surreal e o horror da realidade”, comentou Tim Heidecker certa vez.
Esse tipo de humor — com uma inclinação para sentimentos de preocupação, fracasso e pavor — , é amplamente aceito nos dias de hoje. O mundo online, à sua maneira, é um convite para esse tipo de humor, sem sentido, maluco e, por vezes, bizarro, na forma dos memes.
Os memes representam muitas coisas. Eles são de certa forma um pano de fundo da vida. As piadas giram em torno de estar endividado, deprimido, confuso, cansado e, até mesmo, com uma propensão ao desejo de pôr um fim a própria vida. Outra característica dos memes é a sua perda de significado ao passar do tempo. Tudo isso, acaba por transformar os memes em uma extensão do pensamento niilista. “O absurdo”, como colocou Albert Camus, “nasce do confronto entre a necessidade humana [de felicidade e razão] e o silêncio irracional do mundo”. Diante do absurdo da existência, procuramos por um significado que simplesmente não existe. A internet acaba por atrair aspectos de todos esses tópicos, porém, com humor, criando assim um mundo estético onde nada importa de fato. Ao estabelecer um espaço lúdico para meditar sobre emoções que são perturbadoras, o humor niilista na internet mistura alívio com estresse e leviandade com loucura. O isolacionismo tecnológico torna-se assim uma paródia sobre o choro no vazio.
O problema ocorre quando toda essa apatia resulta em falta de empatia. Quando nos tornamos tão insensíveis ao mundo, deixando de nos conectar com todo o resto. E isso leva a resultados desastrosos.
Muitos filósofos caíram em desespero tentando “superar” o niilismo, mas vejo algo de positivo em adotar uma atitude humorística em relação à natureza absurda do mundo. Se a condição humana é vista como uma piada, faz sentido deixar de lado o mistério da existência e apenas aceitar essa grande lacuna entre o que o mundo é e o que gostaríamos que ele fosse. E a melhor forma de aceitar essa terrível perspectiva é, creio eu, rindo, extraindo prazer de uma situação que, de outro modo, só abrigaria frustração e dor. Me parece uma mistura mais do que adequada. Afinal, se não houver qualquer sentido aparente na existência, precisamos admitir, isso seria estranhamento engraçado.
Texto escrito por Daniel Duncan
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