Por que a galinha atravessou a rua?
1.
Já passava das cinco da manhã quando o celular de Lourival Rocha tocou. Era o técnico de necropsia pedindo que ele desse um pulo até o necrotério. Embora tenha acordado extremamente motivado a voltar a dormir, Lourival Rocha confirmou presença. Eram 30 anos de polícia, 20 como detetive no setor de homicídios, e a rotina o chamava. Ele entrou na delegacia bocejando por volta das seis, passando rapidamente pela recepção onde um ventríloquo reportava um assalto. Um policial com uma caderneta pegava o depoimento do boneco. Lourival Rocha entrou em um longo corredor e fez seu trajeto até o necrotério que, por alguma razão, ficava nos fundos da delegacia, ao lado da máquina de doces. Essa última informação não tinha uma relação direta com a primeira, mas não deixava de ser intrigante. “Quem diabos precisa de uma barra de chocolate depois de revirar uma caixa torácica?”, pensou Lourival Rocha com bolsinhas nos olhos que já poderiam acolher um bebê canguru. Haviam poucas coisas que Lourival Rocha considerava importantes. Umas três, na verdade. Dormir, era uma, ou como sua avó costumava dizer, “ensaiar para morrer”. Para ele, dormir era o melhor de dois mundos: você continuava vivo, porém, inconsciente. Quem precisa de contato físico com outro ser humano quando se pode colocar seus pijamas na secadora? Lourival Rocha era alguém que temia a morte mais do que tudo, mas ao mesmo tempo não conseguia conviver com pessoas. Sua existência era puro conflito, tal qual uma abelha com diabetes, ou uma múmia com rinite. Portanto, perder a consciência, ainda que por algumas horas, era algo que lhe era caro. Ele não era exatamente o que podemos chamar de misantropo. Lourival Rocha não tinha aversão aos seres humanos, inclusive, tinha até amigos que eram. Ele apenas desejava que as pessoas desaparecem. Mas assim era Lourival Rocha. Desde que não precisasse lidar com o mundo, sua felicidade estava assegurada. Ele entrou no necrotério com um chute na porta.
“Espero que você tenha uma boa desculpa para me acordar esse horário, ou o próximo corpo a ser examinado será o seu”, disse Lourival Rocha achando que trombaria com o patologista com quem trabalhou na noite passada no caso de um anão humorista atropelado, porém, para a sua surpresa, era Romina, a legista.
“E eu espero que você tenha me confundido com alguém porque eu tenho um bisturi na mão e um mestrado em tanatologia”.
“Depois que me divorciei, eu tenho mais medo do que uma mulher pode fazer com um advogado”, disse Lourival Rocha tentando contornar a situação. “Desculpe, Romina. Pensei que era o patologista”.
“Ele precisou cobrir um tiroteio em um centro ortopédico, mas foi bom você tocar nisso. Você ainda tem o telefone daquele seu advogado?”.
Os olhos de Lourival Rocha brilharam imediatamente como os de um caipira prestes a ser abduzido. Romina, por quem sempre fora apaixonado, estava se divorciando. Aqui precisamos fazer uma pausa para nos lembrarmos como o casamento de Lourival Rocha acabou. A esposa de Lourival Rocha queria um relacionamento aberto. E ela teve. O problema é que Lourival Rocha só soube depois. Ele começou a desconfiar quando percebeu que a esposa passava tempo demais com o piscineiro, o que, de fato, era muito estranho já que eles não tinham uma piscina. O sexo também não era mais interessante. Em uma noite, Lourival Rocha, tomado de êxtase, disse que queria coisas novas na cama. Sua esposa o ensinou a trocar os lençóis. Ali o fim já estava anunciado. Sexo e morte eram os únicos assuntos que interessavam Lourival Rocha. Embora ele soubesse que, dos dois, apenas a morte ele teria como certo. E tudo bem. Em sua visão, morrer era melhor que amar, no sentido de que a morte termina com o sofrimento intrínseco à condição humana, enquanto o amor, dá início a ele. E Lourival Rocha calou-se um segundo cogitando a possibilidade de sofrer mais uma vez.
“Não precisa ser agora. Me manda no Whats”, disse Romina caminhando na direção de uma mesa de aço com um lençol branco. Ela puxou o tecido e ali havia um cadáver. Os olhos abertos, fixos no teto, lhe davam um aspecto de vivo, embora a sua barriga aberta, sem nenhum órgão, dissesse o contrário. Romina era uma das mais renomadas legistas do Estado. Já chegou a fazer 26 necropsias num só dia. Pode não parecer impressionante, mas imagine que dois deles ainda estavam vivos.
“É sobre a sua galinha. O anão vestido de galinha que foi atropelado”.
“Esse caso foi encerrado. O produtor do comedy club atropelou ele”.
“Mais ou menos…”, disse Romina virando o cadáver do anão como se fosse um frango recém tirado do freezer. Era um tiro na altura da cervical. “Antes de ser atropelado, alguém atirou nele. Você não achou estranho a quantidade de sangue na cena do crime?”.
“Eu nunca tinha visto um anão sangrar. Achei que tinha ver”.
“Pelas marcas no corpo, o produtor atropelou o anão quando ele fugia de alguém”.
“Putaquepariu, caralho”, resmungou Lourival Rocha soando frio. “O produtor era a única testemunha”.
“Sim, e você matou ele. Boa sorte ao preencher seu relatório. E tem mais…”, disse Romina caminhando na direção de outra mesa de aço também com um lençol, que imediatamente foi puxado, revelando um homem nu, com maquiagem e peruca feminina.
“Chegou agora pouco. Ainda tá quente”.
“Quem é ela?”
“Ele. Raimundo Nonato. É um humorista cearense, por isso a fantasia de mulher. Ao que parece… eles acham isso engraçado… Enfim, dois tiros também nas costas. Os projéteis batem com os do anão”.
“Dois humoristas mortos em 24h horas…”, disse Lourival Rocha sem saber se aquilo era motivo de preocupação, ou euforia. Por um segundo, ele se imaginou agradecendo o assassino por aquele serviço prestado à sociedade.
“Onde foi isso?”.
“Na saída daquele teatro na Av. Paulista”.
“Eu preciso resolver essa bagunça antes que o delegado volte do retiro espiritual”, disse Lourival Rocha partindo em retirada.
Romina apenas o observou ir embora enquanto sacava do bolso uma barrinha de chocolate.
2.
Lourival Rocha chegou já no final da peça. Era de um grupo de improviso. No exato momento em que Lourival Rocha pôs os pés no teatro, um ator tirava um sapato da orelha, fingindo ser um celular, e enfiava na bunda ao ouvir o comando “troca!”. Risos ecoaram na sala. Lourival Rocha não riu. Ele estava ocupado demais virando os olhos e tentando não se matar ali mesmo. A verdade é que ele não parava de pensar em Romina. Era uma situação conflituosa. Vale lembrar que, depois do divórcio, Lourival Rocha tornou-se alcoólatra. Ele bebia tanto que quando tentou doar sangue, o teor de álcool derreter a bolsa. Algumas pessoas acordam pela manhã se perguntando por que beberam tanto na noite passada. Lourival Rocha acordava e lamentava por não ter bebido o bastante. Para Lourival Rocha, o álcool não era diversão, era necessidade. A situação se tornou insustentável quando Lourival Rocha passou a beber para esquecer o seu problema com a bebida, ao ponto de seu fígado entrar com uma liminar na Justiça pedindo uma distância de 200 metros entre os dois. Ele ainda bebia um whisky vez ou outra, mas com cuidado. Ele teve muita dificuldade para entrar no Alcoólicos Anônimos de seu bairro porque, de fato, era um grupo de alcoólatras que prezavam pelo anonimato. Ele levou quase seis meses para achá-los. Mas era difícil não ter ideias. Romina era perfeita. No entanto, Lourival Rocha balançou a cabeça e tentou se esquecer daquilo. Tinham dois humoristas estirados no necrotério e um assassino solto na cidade. Lourival Rocha sabia que era um acerto de contas. Não era um assassino em série, já que todos os assassinos em série da cidade estavam na “Convenção de Assassinos em Série de Floripa”. O álibi conferia. Era algo pessoal. E o produtor, o único suspeito, era uma carta fora do barulho. Normalmente as chances de um criminoso cometer outro crime caem quase pela metade depois de sua execução. Também se tornará uma questão de orgulho. Lourival Rocha nunca antes havia perdido um caso e o seu ego era uma das cinco estruturas criadas pelo homem que podem ser vistas do espaço.
3.
A peça havia acabado e a plateia se dispersava. Lourival Rocha avistou um dos atores, que tinha um rabo de cavalo, e se aproximou dele mostrando seu distintivo.
“Lourival Rocha. Homicídios. Eu queria fazer algumas perguntas sobre um colega seu, Raimundo Nonato”.
O ator gelou por um instante e, em um gesto pensado, saiu correndo por entre as cortinas do palco. Uma perseguição deu início. Não foi fácil para Lourival Rocha que dois anos antes havia perdido um dos pulmões para o tabaco, fato que, inclusive, deu a confiança necessária ao seu fígado para pedir a liminar. Na coxia, o ator desapareceu por entre um grupo de artistas que discutia o filme “Bacurau”, que já tinha sido lançado há mais de 7 anos, mas os artistas simplesmente não sabiam falar de outra coisa. Lourival Rocha paralisou quando viu uma sombra suspeita. Ele sacou seu revólver colt. A sombra sacou uma arma. Ele engatilhou. A sombra engatilhou. Ele apontou. A sombra apontou. O coração de Lourival Rocha batia como se estivesse sendo bombeado com a ajuda do Olodum. Em seguida, ele reconheceu que a sombra era a dele e se tranquilizou.
De volta a delegacia, Lourival Rocha resmungava enquanto escrevia seu relatório no computador. O som do teclado dava uma dimensão de sua raiva por ter perdido o idiota com o rabo de cavalo, e que corria como um. Ele sentia a mesma vergonha de um carrasco voltando ao trabalho depois de uma tentativa fracassada de suicídio. Lembrou-se dos bonequinhos dos Power Rangers que eram vendidos nos anos 90, que escondiam a cabeça na barriga, e pensou como aquilo seria útil naquela situação constrangedora, e, por um instante, cogitou usar o buraco na barriga do anão que ainda jazia no necrotério. Mas o fluxo de pensamentos cessou quando, vencido pelo sono, Lourival Rocha apagou ali mesmo em sua mesa. Ele ainda teve tempo de pensar algumas coisas antes de perder a consciência. Pensou em Romina, lembrou-se de uma moqueca vendida na frente de sua casa, e de algo que leu de Nietzsche dizendo que há uma possibilidade de vivermos a mesma vida incontáveis vezes, tudo na mesma sequência e ordem, o que Lourival Rocha considerava como terrível, especialmente para quem está tentando fugir de uma dívida no banco. E não pensou em mais nada. Ele já estava ensaiando para morrer.
Texto de Daniel Duncan originalmente publicado na Minhocazine.
Leia a parte 1.
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