
O PROBLEMA NÃO É O PORTA DOS FUNDOS. O PROBLEMA É QUE DEUS NÃO RI.
Nas últimas semanas, cristãos mobilizaram um boicote à Netflix em virtude do novo especial de Natal do grupo humorístico Porta dos Fundos. Houve até quem pediu para o Poder Público punir a plataforma. Nas redes sociais, os religiosos foram alvos de críticas por sugerirem “censura” aos humoristas. Infelizmente, sou obrigado a discordar e gostaria de por meio desta defendê-los. Não os humoristas, mas os cristãos. Eles agiram totalmente de acordo com a fé cristã, afinal, Deus nunca teve apreço pelo riso.
Na Idade Média, quando o cristianismo era a voz de Deus na Terra, o riso era considerado um ato pagão e era visto pela Igreja como uma representação da loucura e da não razão. Portanto, a Igreja o recriminava. O riso não podia ser aceito. Jesus nunca riu e esta é a afirmação na qual a Igreja se baseia. Em certa medida, essa afirmação é bastante lógica.
Uma piada é a celebração das falhas. Precisa haver algo errado, inquietante, ou desconfortável de alguma forma em todas as piadas. Deus, por outro, é o oposto disso. Quando o pecado original é cometido no Paraíso, acontece um desequilíbrio no mundo. A reação de Deus se dá com seriedade e o Diabo, responsável por isso, ri. O riso está ligado à imperfeição, ao fato de que as criaturas sejam decaídas, algo que não coincide com o modelo que a Igreja apresenta de um Deus perfeito.
Outro ponto é que o respeito a fé é fundado no medo. A frase “Deus castiga” não é apenas uma expressão, mas uma realidade aos olhos dos cristãos. Deus é uma entidade que pune, logo, é preciso temê-lo. Nesse sentido, Deus é tão digno de respeito quanto um ditador. Estes, como bem sabemos, também não gostam de humoristas. Existe uma história que, durante a Alemanha nazista, existiu um tribunal especial chamado “The Nazi Joke Courts” que julgava todos os que faziam piadas com o regime. Eram julgados todos que faziam piadas com Hitler — ou rissem delas. Aqui perto, nos anos 90, o comediante colombiano Jaime Garzón foi morto por militares de direita ligados ao governo por fazer sátira política na tevê. Ao contrário do que diziam os padres na Idade Média, há riso na Bíblia sim. Abraão e Sara riem da mensagem de Deus sobre a concepção de Issac:
Então disse o Senhor: “Voltarei a você na primavera, e Sara, sua mulher, terá um filho”. Sara escutava à entrada da tenda, atrás dele. Abraão e Sara já eram velhos, de idade bem avançada, e Sara já tinha passado da idade de ter filhos. Por isso riu consigo mesma, quando pensou: “Depois de já estar velha e meu senhor já idoso, ainda terei esse prazer?”. Mas o Senhor disse a Abraão: “Por que Sara riu e disse: ‘Poderei realmente dar à luz, agora que sou idosa?’. Existe alguma coisa impossível para o Senhor? Na primavera voltarei a você, e Sara terá um filho”. Sara teve medo, e por isso mentiu: “Eu não ri”. Mas ele disse: “Não negue, você riu”.
Essas histórias dizem muito sobre a relação entre o riso e o poder. Regimes totalitários não gostam de humoristas e existe um porquê: o humor é uma antítese do medo. E, sem medo, não existem ditaduras, tampouco Deuses.
Sara não riu pela segunda vez por medo, um sentimento do qual os populares que ficaram aos olhos do Führer podem descrever muito bem.
Mas existe uma última razão pela qual acredito que o riso e Deus jamais serão amigos: a Morte.
A Igreja foi encurralada pelo riso. Em plena Idade das Trevas, era no humor que as pessoas poderiam encontrar algum alívio. Isso é evidente nas antigas fábulas. Segundo Philippe Ménard: “o riso mais profundo é, talvez, aquele que desvela e detalha as inquietudes, as angústias, os desejos, os sonhos em uma palavra, os sentimentos perturbadores escondidos no coração dos seres”. Em O Nome da Rosa, de Humberto Eco, o personagem Jorge de Burgos, impondo-se como guardião da fé, define o riso da seguinte forma:
— Mas que coisa te assustou neste discurso sobre o riso? Não eliminas o riso eliminando este livro.
— Não, decerto. O riso é a fraqueza, a corrupção, a sensaboria da nossa carne. É o folguedo para o camponês, a licença para o avinhado, mesmo a Igreja na sua sabedoria concedeu o momento da festa, do carnaval, da feira, desta poluição diurna que descarrega os humores e entrava outros desejos e outras ambições… Mas assim o riso permanece coisa vil, defesa para os simples, mistérios desconsagrados para a plebe. Também o dizia o apóstolo: em vez de arder, casai-vos. Em vez de vos rebelardes à ordem querida por Deus, ride e deleitai-vos com as vossas imundas paródias da ordem, no fim da refeição, depois de terdes esvaziado as canecas e os garrafões. Elegei o rei dos imbecis, perdei-vos na liturgia do asno e do porco, jogai a representar as vossas saturnais de cabeça para baixo… Mas aqui, aqui… — agora Jorge batia com o dedo na mesa, perto do livro que Guilherme tinha à sua frente — aqui inverte-se a função do riso, eleva-se a uma arte, abrem-se-lhe as portas do mundo dos doutos, faz-se dele objeto de filosofia e de pérfida teologia…
Existem duas qualidades que separam os homens dos animais. Uma é o riso, uma capacidade exclusiva do ser humano. A outra é a consciência da Morte. Uma noção de limite. O homem é o único bicho que sabe que deixará de existir. Quem sabe que não vai morrer não ri, que é o caso dos animais, e quem sabe que nunca morrerá também não, que é o caso de Deus. O riso, portanto, é próprio do ser humano. O homem é o único animal que ri porque é o único que tem consciência de sua extinção.
Por tudo isso, já era de se esperar que o cristão fosse tão sem graça.
Texto escrito por Daniel Duncan
Daniel Duncan é humorista e autor do livro "A Anatomia da Piada" disponível aqui.