
AZIZ ANSARI, CORINGA E A CULTURA “WOKE”, OU (O VITIMISMO NA COMÉDIA)
2019 ainda nem acabou, mas já considero “Right Now”, de Aziz Ansari, um dos melhores especiais de comédia do ano, ou, no mínimo, um dos mais importantes. Lançado pela Netflix, o espetáculo de pouco mais de uma hora, dirigido por Spike Jonze, é o melhor trabalho do humorista até aqui. A decisão da diretora de fotografia, Autumn Durald — do excelente “Palo Alto”, de Gia Coppola — de captar todo show com uma 16mm não poderia ser melhor. As manchas de poeira aqui funcionam quase como um remete ao passado. Isso, somado aos planos fechados, levam Aziz e o público à um passeio intimista que ninguém gosta de fazer: o das reavaliações.
Depois do impacto que o #MeToo teve sobre sua carreira, Aziz tinha uma difícil tarefa: como falar sobre tudo isso? A maneira mais óbvia (e fácil) seria apontar as incoerências do movimento — como já é de praxe da alt-right. Felizmente, Aziz, escolhe outro caminho, onde não existem respostas, mas novas perguntas. O que exatamente devemos fazer quando temos uma ligação emocional com a arte de um indivíduo ruim? Como exatamente devemos discutir mudanças culturais sem cair instantaneamente em discursos simplistas (recheados de um sentimento de culpa)? Quem é realmente o vilão? São perguntas difíceis que abrem caminho para muitas questões presentes no panorama sócio-cultural — e que merecem atenção. Mas Aziz não faz isso de uma maneira explícita, ou como uma muleta, ao contrário, sutilmente, ele explora os problemas, os conflitos e os dilemas de uma cultura que, de maneira abrupta, mudou o quadro geral.
As perguntas surgem, no subtexto das piadas, mas as respostas não chegam. O objetivo de Aziz, aqui, enquanto intérprete, não é vomitar certezas, mas apontar as disparidades no cerne da cultura, mas sem castigar ninguém por sua aparente hipocrisia.
Todd Phillips, por outro lado, atira em outra direção.
Em uma entrevista para a Vanity Fair, o diretor do filme “Coringa”, disse:
“Go try to be funny nowadays with this woke culture. There were articles written about why comedies don’t work anymore — I’ll tell you why, because all the f***ing funny guys are like, f*** this s**t, because I don’t want to offend you.” [“Tente ser engraçado hoje em dia com essa ‘woke culture’. Há artigos dizendo por que as comédias não funcionam mais — te digo o porquê, porque todos os caras engraçados estão, tipo, foda-se, eu não quero te ofender”].
Em outras palavras, a velha ladainha de que o mundo está muito “certinho” e que, hoje, tudo ofende, matando assim a comédia. Mas será mesmo que essa tal “woke culture” prejudica a comédia? Bom, historicamente, não.
No final da Segunda Guerra, nos EUA, houve uma higienização em todos os meios de entretenimento da época. Artistas não podiam falar palavrões porque isso era tido como crime de obscenidade — algo bem mais denso que qualquer forma de “censura” nos dias de hoje. Então, diante desse cenário, nasceu um movimento de comediantes judaico-americanos que começaram a buscar “espaços seguros”, na maioria das vezes em hotéis, para fazerem shows específicos para o público judaico-americano com textos repletos de insultos dirigidos a grupos étnicos e, claro, por ser um meio dominado por homens, muitas e muitas piadas sexistas, geralmente, envolvendo esposas, mães e filhas. Essas piadas “incorretas” serviam como pontos de referência comuns e alvos convenientes dos quais todos podiam rir, já que ninguém, além do público ali presente, ouviria o que se passava nesses espaços. Esses insultos, ainda que de boa índole, colocavam o público na posição de “aceitar” idéias racistas e sexistas vigentes na época. Aos poucos, esse tipo de comédia tornou-se tão difundida que transcendeu a experiência judaica e tornou-se essencialmente americana. Ou seja, até os anos 60, quando você via um comediante norte-americano no palco, ele estava reproduzindo o mesmo estilo de piadas dos comediantes judaico-americanos do período pós-guerra. Lenny Bruce, comediante da década de 60, preso inúmeras vezes por suas piadas, foi um dos que beberam dessa fonte. No entanto, Lenny ampliou ainda mais esse fio da liberdade de expressão, através de comentários sobre os tópicos políticos da época, algo na linha do seu contemporâneo Mort Sahl, no entanto, com críticas mais incisivas. Toda a performance de Lenny era motivada pelo cenário político e o conservadorismo abusivo da década de 60. Anos mais tarde, Richard Pryor se mudaria para Berkeley — durante o período de intensas manifestações na cidade — e deixaria de ser um comediante que imitava o estilo de Bill Cosby e passaria a tecer comentários sobre a cultura norte-americana, mudando para sempre os rumos da comédia moderna, influenciando diretamente pessoas como Bill Hicks, que, por sua vez, também mudaria profundamente a perspectiva de humoristas e público.
Em resumo, o que quero dizer é que os melhores comediantes que já passaram pela Terra estavam atentos as mudanças, ou extraíram algo importante delas. E eu desafio qualquer pessoa chamar esses humoristas que citei de “politicamente corretos”. Eles eram incorretos de todas as maneiras, no entanto, eles usaram a pressão social como um combustível para expandirem suas ideias de maneiras que ninguém nunca fez antes. Sabe quem nunca fez isso? Comediantes que ficam reclamando do “politicamente correto” da maneira que vemos hoje. Estes, por sua vez, lutam, não pela comédia, mas por eles mesmos. Tudo em torno dessa questão, do público ao comediante “reclamão”, envolve um sentimento de aceitação e a importância que um artista dá a si mesmo. Esse é o ponto em debate: o culto a própria imagem e a relevância dos sentimentos individuais.
Porém, existem os que só reclamam, fazendo-se de vítimas, mesmo, algumas vezes, tendo total autonomia para dizerem o que quiserem. Por outro, existem os que entendem que mudanças culturais acontecem e que a comédia lida diretamente com elas. Não importa em qual período você esteja, sempre vão existir pessoas que se sentiram ofendidas. Houve na época dos comediantes judaicos pós-guerra, houve na época de Lenny Bruce, houve na época de Richard Pryor e haverá nessa também. Todos os comediantes precisaram lidar com isso, ninguém é especial. É parte integral desse ofício.
O que me leva novamente ao especial do Aziz.
“Right Now” não parece o registro de um comediante rico reclamando que não se pode fazer nada, ou uma retórica defensiva onde culpa o público pelo seu comportamento, tampouco uma série de desculpas, nem uma tentativa de parecer humilde ou algo do tipo. Na verdade, o show é tudo isso e muito mais. Mas essa é a beleza desse show. Contradição é a palavra. Em alguns momentos, ele defende a importância dessa “woke culture”, outra vezes condena, algumas vezes olha para o passado com admiração, outras vezes com repulsa, observa a importância do contexto cultural, aponta o problema do contexto cultural. Contradições. O show é repleto delas. No entanto, em momento algum, Aziz tenta respondê-las. E isso que torna esse especial tão especial.
Em um mundo onde os humoristas cada vez mais querem ser percebidos como donos da verdade, é muito bom ver um que só quer questionar.
Texto escrito por Daniel Duncan
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